A geopolítica tecnológica (por Antônio Carlos de Medeiros)
A próxima era de conflitos será vencida ou perdida com softwares
atualizado
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O império contra-ataca. Donald Trump começou com um slogan de campanha política: MAGA (Make America Great Again). Mas o MAGA tornou-se mais do que um slogan. É o embrião da construção de uma nova ordem imaginada.
A ideia de ordem imaginada foi popularizada recentemente por Yuval Harari. Para ele, a ideia se refere a sistemas sociais e políticos que se baseiam “na crença compartilhada em histórias e mitos, não em instintos e relações pessoais”. Tais mitos são cruciais para a coesão social em sociedades complexas, mesmo que baseados em crenças subjetivas.
Trump entendeu a nova natureza da geopolítica mundial, que requer a modernização e reconfiguração da força militar e do complexo industrial militar. Numa geopolítica de predominância das disputas imperiais entre os Estados Unidos, a China e a Rússia.
A reconstrução do império americano requer consenso e coesão. Daí a construção de nova ordem imaginada. Mesmo que erraticamente, Trump está nesta direção.
A reconfiguração da geopolítica mundial terá como alicerce a inovação tecnológica. Uma espécie de geopolítica tecnológica. Agora, o século do software na indústria armamentista dos impérios e da política de autodefesa na Europa e no mundo.
A dependência inicial do Vale do Silício ao Estado-Nação e às Forças Armadas – desde a década de 1940 – gerou a união entre a ciência e o Estado com fins militares. Resultou na bomba atômica, nos compostos farmacêuticos, na teoria da relatividade, nos foguetes intercontinentais e satélites e nos precursores da Inteligência Artificial (IA).
A era atômica, era da estratégia de dissuasão que gerou a Pax Americana dos últimos 80 anos, está chegando ao fim. Uma nova era de dissuasão, baseada em Inteligência Artificial, está para começar. Essa nova era requer a reaproximação do Vale do Silício do Estado-Nação. A ordem imaginada do MAGA mira essa reaproximação entre ciência e Estado.
No meio do caminho, o Vale do Silício mudou de rumo e mirou o mercado, a propaganda e o consumo. Distanciou-se das inovações voltadas para a segurança, a medicina, a educação e o bem-estar coletivo. Gerou as Big Techs.
Alexander Karp e Nicholas Zamiska, em “A República Tecnológica”, produziram uma instigante análise factual do processo de inovação nos Estados Unidos e no mundo e um olhar com foco nas relações do Vale do Silício e o Estado-Nação.
Mostram que o Vale do Silício se voltou para dentro, “concentrando sua energia em produtos de consumo , em vez de projetos de segurança coletiva e bem-estar”. Trata-se da evolução da era digital das Big Techs, “dominada pela publicidade e compras on-line, bem como pelas redes sociais e plataformas de compartilhamento de vídeos”.
O século XXI é o Século do software. Pesquisas de pontas mostram o potencial de revolucionar tudo, desde operações militares, incluindo operações policiais urbanas, até a medicina.
Karp e Zamiska, então, enfatizam que os Estados Unidos deveriam retornar à tradição de estreita colaboração entre a indústria de tecnologia e o governo. Produziu-se a bomba atômica e a internet. Agora, para eles, 80 anos depois há uma encruzilhada no campo da ciência da computação, na esteira da IA.
A próxima era de conflitos será vencida ou perdida com softwares.
Para eles, “é essencial que redirecionemos nossa atenção no sentido da construção da próxima geração de armamentos de IA que determinará o equilíbrio de poder neste século, conforme a era atômica termine, e no próximo”. A era da dissuasão pelo software. Eis a realidade da geopolítica tecnológica.
As políticas de defesa estão envolvidas em um novo tipo de corrida armamentista. Esta nova ênfase tem implicações para conflitos em ambiente urbano. Dotar as polícias de softwares de IA. Karp e Zamiska se referem ao que chamam de enxames de drones “para lidar com cenários dinâmicos de combate de larga escala” – que hoje são objetos de pedidos de patentes para lidar com conflitos urbanos.
Em “A República Tecnológica” os autores insistem na necessidade de alinhamento de concepções de interesse coletivo entre o Estado e o setor de tecnologia. “As pré-condições para uma paz duradoura em geral só decorrem de uma ameaça plausível de guerra”. Outra vez: a dissuasão do software, com o “hard power” do software.
Tudo somado, para eles os resultados que mais interessam às pessoas e à sociedade (redução da fome, do crime e da doença) dependem cada vez mais de inovações da República tecnológica dos softwares.
O MEGA visaria reforçar um senso de identidade nacional e coletiva. Ao longo da história este senso, para Karp e Zamiska”, serviu de pedra fundamental para o progresso humano. Ressalvados os limites do nacionalismo exacerbado.
Ordem imaginada na direção da República tecnológica e da geopolítica tecnológica.
São os caminhos e contradições do processo de inovação em curso.
O Vale do Silício será capaz de sair da bolha do individualismo e materialismo para a lógica do interesse coletivo e da identidade coletiva com mitologia compartilhada?
Polêmicas e dilemas contemporâneos.
*Pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science.