atualizado
O preconceito fez Átila Fragozo, 43 anos, querer mudar o próprio jeito de falar ao vir da Bahia para a Freguesia do Ó, na zona norte de São Paulo, nos anos 1990, ainda no início da adolescência. “Eu era o baiano que ficava tentando falar igual paulista. Hoje, eu tenho meu amor próprio. Sei quem eu sou e não tenho vergonha do meu sotaque”, afirma.
Fragozo fez mais. As palavras viraram tinta e ele reafirmou as suas origens ao criar, com o pernambucano Renoir Santos, o Paulestinos — mistura de paulista com nordestino. Os dois transformaram lambe-lambe em arte, com seus cartazes em preto e branco que exibem frases como “Amares que vem para o bem” ou “A gente se acostuma, mas não deveria”.
“Quando cheguei a São Paulo, senti muita dificuldade ao ser chamado de baiano pejorativamente. De sofrer xenofobia, mas sem nem saber que tinha uma palavra para isso”, diz.
O artista encontrou inspirações diversas e diz que a pichação chamou a sua atenção por ser a primeira intervenção urbana muito forte que viu em São Paulo. Encontrou amigos no grafite e em pessoas que trabalhavam a linguagem de diversas formas.
A criação do Paulestinos
A ideia de partir para o lambe-lambe como arte surgiu ao ver trabalhos de Banksy e Shepard Fairey. Então, fundou o Paulestinos com Renoir, em 2012.
“A gente estava nessa pira. Como nordestinos em São Paulo, como interagir com a cidade com as nossas memórias, a nossa identidade nordestina”, diz. “A gente resolveu juntar elementos do cangaço com a ficção científica do HQ japonês, como Akira. Cangaceiro com sabre de luz, como no Star Wars”, afirma.
Os fatos que alimentam o trabalho de Fragozo acontecem no dia a dia paulistano. “São Paulo é esse lugar efervescente. Você acaba vendo cenas na sua frente, frases, ditados que também são mixados, remixados, misturados com gírias. Daí, quando escuto isso, já vou anotando no meu caderninho. Às vezes, uma música, um conselho, uma observação.”
Uma das frases ouvidas por Fragozo foi: “É dano que se recebe”. Assim mesmo, sem “d” entre “n” e “o”. Fez todo o sentido, dado o cenário de vida real que presencia diariamente. O ateliê do artista fica no Bar da Nice, um lugar de acolhimento e partilha, a poucos metros do fluxo da Cracolândia.

“A gente fala de redução de danos, mas às vezes a gente também recebe um dano trabalhando aqui. Não é um lugar feliz. Tem momentos felizes, tem espaços que proporcionam a felicidade. Mas é um espaço de uma desgraça humana, de a pessoa estar precisando recuperar sua auto-estima, voltar à vida social, ao direito à moradia, ao direito à educação. Ter todos esses direitos que foram subtraídos durante tanto tempo. E a arte acaba sendo uma coisa que pode aproximar as pessoas”, diz.
Do crack à arte
O próprio artista usou crack por dois anos, logo que se mudou para o centro, entre 1997 e 1998. Hoje, vive na Avenida Duque de Caxias, a cinco quadras do ateliê. A sua arte se expande pelas ruas e perto dali, na Rua Mauá, um mural com lambe-lambe homenageia Ayrton Senna, não sem sofrer as intervenções típicas dos ambientes urbanos.
“No primeiro dia, tinha uma frase, acho que a pessoa leu, ficou impactada e jogou um vinho na parede”, diz. “É esse o contato. O que a poesia, a palavra, a arte consegue reverberar na cidade. Essa troca da gente, uma doação e um recebimento”, afirma.
A pergunta que espreita Fragozo ao longo de toda a conversa com o Metrópoles é aquela que foi feita a todas as pessoas ouvidas nas últimas semanas para esta reportagem especial do aniversário de 471 anos de São Paulo. Existe amor em São Paulo? “A pergunta é: existe amor na gente? Cadê o nosso amor? O nosso amor próprio. Se a gente não tiver, não vai encontrar amor em lugar nenhum.”

Mas existe uma resposta que mostra o quão intensa se tornou a relação entre a cidade e ele. “Eu amo São Paulo. São Paulo é a cidade que me fez artista, me deu oportunidade. Se todo mundo vem para São Paulo em busca de oportunidade, eu não vim, porque minha mãe me trouxe, não tive a escolha de vir para cá. Minha mãe veio atrás da oportunidade dela e me trouxe. Eu consegui encontrar a minha. Sou muito feliz aqui em São Paulo, eu amo essa cidade e amo, principalmente, esse pedaço aqui, o chamado quadrilátero do pecado”, diz, citando a área ao redor da Rua General Carneiro que já foi berço de cinema e música na capital.
A história de Átila Fragozo integra a série comemorativa do aniversário de 471 anos de São Paulo. Confira todas as reportagens da edição especial:
- São Paulo 471 anos: histórias da cidade mostram que existe amor em SP
- “Existe muito amor na cidade, sim”, diz Criolo no aniversário de SP
- Cartomante tira a sorte de SP e garante: “Tem amor, sim”
- “SP é ilha de esperança onde posso ser quem eu sou”, diz ativista LGBT
- Do hall do prédio ao farol: casais contam como se apaixonaram em SP